A vida me deu a oportunidade de trabalhar com jovens em uma clínica de reabilitação no RJ, trazendo a agricultura e o contato com a Terra como veículo para o tratamento. A maioria dos pacientes é dependente químico, alguns com problemas psiquiátricos e, outros com questões específicas que os levaram a internação.
As relações que se criaram a partir daí, são inenarráveis. A evolução do comportamento e interação desses jovens a partir do contato com a Terra, me fez refletir que todo o meu trabalho sempre foi nesse sentido. Perceber que a minha procura por uma vida mais sustentável é o meu processo de reabilitação. A nossa espécie precisa se reabilitar com a Mãe Terra. Resgatar suas habilidades para interagir de maneira saudável com o todo.
A reprodução do status quo e a manutenção das grandes indústrias capitalistas dependem da dependência criada em cada indivíduo. A lógica é dependente dos dependentes. Uma dependência artificialmente criada que vai contra a inteligência natural do nosso instinto de sobrevivência. A distância dos processos que te sustentam o torna alienado. Alienação leva à dependência. Dependência vicia. Vício mata.
Em uma sociedade viciada em dependência, tentar participar dos processos que te sustentam é um processo de reabilitação. Sustentar-se é criar autonomia. Autonomia leva à liberdade, que por sua vez, torna a lógica da dependência insustentável. É um resgate da sua essência para estar novamente habilitado para cumprir função no todo. Fazer parte. E isso parte ,necessariamente, da reconexão com a origem e o final. Da terra viemos e para ela retornaremos. Reconhecer a mãe na qual a arquitetura social moderna nos separou.
Não importa o motivo ou escala de dependência, plantar, observar, cuidar, colher, comer é remédio para todo mundo. Mas a maior dificuldade do dependente é reconhecer o vício. Quando o vício é a própria dependência é ainda mais difícil. Continuar se alimentando e reproduzindo os ciclos viciosos de uma sociedade doente é triste mas é fácil. Está tudo arquitetado para isso. Se não passa na propaganda e nem está escrito nos jornais, temos dificuldade de perceber. O que é diferente se destaca, o que é normal, se naturaliza.
Precisamos desnaturalizar a naturalização da falta de natureza no nosso dia a dia, responsável pela legião de viciados que compõe a sociedade da dependência. Desenferrujar nossa inteligência natural, nosso instinto. Se você já não sabe onde este se encontra, saia do sofá e se coloque em teste. Fome, frio, medo, entre outros, são ferramentas de busca rápida para encontrar o tal instinto quase extinto, que já não se pode buscar no Google.
Falando de maneira reducionista, gostaria de colocar como eu vejo os 3 principais degraus para sairmos do vício da modernidade e como coisas simples ajudam-nos a dar o próximo passo na reabilitação.
O primeiro passo é assumir que estamos doentes (espécie/sociedade/indivíduo).
Para isso, sugiro um tempo de observação em meio a natureza natural. Em um local de abundância de vida e recursos, com outras formas de vida que ali sabem se comportar. Depois, visite um lugar completamente criado pelo ser humano moderno, por exemplo um grande shopping center ou um lixão de um centro urbano mais próximo. O estalo da sanfona pode dar um curto-circuito benéfico para criar consciência sobre a doença. Mas o click do despertar pode vir até no banho, pois não é um processo que acontece de fora para dentro.
O segundo passo na reabilitação é querer mudar. Isso tem a ver com sonhos. Esperança. Acreditar que existe força para rebrotar. Assim, nada melhor que o plantio para se dar esse segundo passo. Colocar uma semente no solo e vê-la brotando é o milagre da vida. É simples, mas é muito forte. Open bar de energia vital. Deixa doidão. Dá prazer.
O terceiro passo é a mudança. Na hora de fazer igual, faça diferente. Tem a ver com o prazer interno em sair do ciclo vicioso. Enquanto for doloroso, a recuperação é simplesmente um espaçamento até a próxima recaída. Mas quando se torna prazeroso fazer diferente do que era feito, você abre o leque de possibilidades e se torna produtor da sua realidade, se torna livre e deixa de ser dependente da indústria que te vicia.
Para o terceiro passo, indico cuidar, colher e principalmente, comer! Comer é com certeza um dos maiores prazeres da vida. A vida cumpre função através da fome. O prazer interno de comer aquilo que você plantou é a chave para saborear a liberdade. Alimentar-se de uma agrofloresta em evolução/cooperação no espaço/tempo, te permite permanecer habilitado no modo função.
Desabilitando-se dos vícios de uma sociedade onde a doença é a dependência, renovamos a nossa carteira de habilitação natural. Não tem receita, modelo ou resposta, mas para reabilitar-se com o todo, sugiro que “sujem” a mão de Terra. Esse é um relato de um ser humano em recuperação. “Só por hoje funciona” ...